Este Blog não adere ao Novo Acordo Ortográfico

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sexta-feira, 25 de junho de 2010

Rosas Portuguesas

Quando não se entretinha a contar-me histórias de santos, Avó-Má que era muito religiosa, e tinha uma secreta esperança que um dia eu fosse para padre, como um tio que teve mas não cheguei a conhecer, contava-me histórias dos seus tempos de menina de colégio interno, onde foi educada. Embora eu não fosse o neto preferido dela, esse era o primo Jojo, filho da Tia Zela (Gisela) por razões que mais tarde contarei, eu era muito sossegado e dócil, e acima de tudo, um grande ouvinte, sequioso, que absorvia tudo o que era novidade.
Contava-me as peças de teatro que organizavam e numa delas o enredo girava à volta de “Imperatrizes” dos cinco continentes, em que ela representava a “Imperatriz da Europa”.
Embora nunca tivesse saído do Extremo Oriente, falava da Europa com todos os pormenores, das cidades, das pessoas, dos monumentos, fruto das leituras que fez. Quando falava de Portugal, contava que era tudo diferente, as casas, as pessoas, as comidas, as flores, fazia questão de salientar as rosas (talvez relacionando com o Milagre das Rosas, que também me contou…).
Através de Avó-Má viajei por essa Europa, subi à Torre Eiffel, ouvi tocar o Big Ben (e a sua história)…, andei de gôndola em Veneza, impressionei-me com as neves eternas (na altura…) dos Alpes… extasiei-me sob a Capela Sixtina do Vaticano e recebi a bênção urbi et orbi de Pio XII… e senti o cheiro das rosas portuguesas…
Avó-Má era assim; apesar de ter sido educada num internato católico, conservador, tinha um espírito aberto, uma sede de expandir os conhecimentos. Apesar da vida nunca mais lhe ter proporcionado sair de Macau, nem sequer conhecia Hong Kong, mesmo ali ao lado, desejava convictamente que os seus filhos levantassem voo e procurassem novos horizontes.
Hoje, a Família Amarante encontra-se espalhada pela Europa, Ásia e Oceania. Já esteve em África e eventualmente nas Américas. Resultados da Diáspora.
Eu nunca mais regressei a Macau, primeiro por razões económicas, depois, porque o Macau que eu vivi e lembro, já não existe. Dos familiares, restam um Tio e Família e dois primos.
Há uns anos o meu irmão Mário e sua mulher foram a Macau. Apesar de ter nascido lá, saiu muito novo e não se lembrava de nada. Levou, por mim, na sua bagagem, uma rosa portuguesa, para depositar no ossário dos meus Avós no Cemitério de São Miguel.
Avó-Má compreendeu concerteza.

terça-feira, 22 de junho de 2010

"Poéma di Macau"


“Poéma di Macau”

Pa vôs, Macau quirido, pequinino,
Nésga di chám pa Dios abençoado,
Macau cristám, qui fórça di destino
Já botá na caminho alumiado;
Pa vês, iou pensá vêm co devoçám,
Rabiscá unga poema di amôr,
Enfeitado co vôs no coraçám,
Pa têm mercê di bénça di Sinhôr.
Tera qui nôsse Rê chomá lial,
Sômente unga: sã vôs, bunitéza,
Filo di coraçám di Portugal,
Alma puro inchido di beléza.
Iou querê vêm contá co sentimento,
Vôsso estória pa mundo uvi!
— Qui di péna fino? Qui di talento?
Ai, qui saiám Camões nom-têm aqui!


“Poema de Macau”

Para ti, Macau querida, pequenina,
Nesga de terra por Deus abençoada
Macau cristão, que a mão do destino
Colocou no caminho iluminado;
Para ti, pensei vir com devoção,
Compor um poema de amor,
Contigo enfeitado no coração,
 E assim merecer a bênção do Senhor.
Terra que um nosso Rei chamou leal,
Só uma: és tu, graciosa
Filha do coração de Portugal,
Alma cândida, impregnada de beleza;
Quero vir contar com sentimento,
A todo o mundo a tua história!
(…)
 Ah, que pena não estar aqui Camões»

Mais um  poema do grande poeta popular macaense José dos Santos Ferreira ("Adé"), com uma tradução livre incompleta, sem indicação de tradutor.


Foto da net

sábado, 19 de junho de 2010

Macau e a 2ª Guerra Mundial


Passou no dia 6 de Junho mais um aniversário do Dia D, que marcou o início da viragem na 2ª Guerra Mundial, com o desembarque dos Aliados na Normandia.
Embora Portugal não participasse no conflito, graças à ambígua política de Salazar de “neutralidade colaborante”, o facto é que o País não deixou de sofrer as suas consequências.
Macau, era então uma espécie de “oásis de paz”, com Hong Kong ocupada pelos Japoneses. Tornara-se o último reduto neutro para os refugiados. A população, normalmente de 500 mil pessoas, passou a amontoar nos seus 20 quilómetros quadrados, mais de um milhão de habitantes. O ambiente fervilhava de todo o tipo de movimentações e actividades. O mercado negro prosperava, a espionagem de todas as partes tinha o seu campo livre para actuar. Não era difícil descortinar nos terraços das casas antenas de transmissão, embora estivessem proibidas. A minha Mãe contava que na casa ao lado, que tinham um hóspede japonês, rara era a noite que não ouviam o “bip-bip” das emissões em morse.
Tirando os sobrevoos dos aviões do Eixo, não havia sinais de hostilidades, excepto já quase no fim da guerra, os americanos resolveram bombardear um hangar à beira-mar, cuja função era guardar combustível para hidroaviões e armazenava alimentos. Foi um gesto gratuito e inconsequente no esforço da guerra, mas que provocaram estragos e feridos, que o nosso governo condenou de forma veemente.
À semelhança da maioria dos macaenses, a nossa Família passou muito mal esse período. A administração portuguesa via-se e desejava-se para alimentar toda aquela gente. Chegou-se ao ponto de vender os históricos canhões da Fortaleza da Barra (Ver post “Lendas de Macau I”) para comprar arroz. A distribuição das senhas de racionamento era prática geral.
Contava a minha Mãe que iam para as filas de distribuição, ela e os irmãos mais novos, à meia-noite; às seis da manhã, vinham os chineses aos magotes e empurravam as crianças para fora das filas. Nem sempre conseguiam as senhas ou as rações. Então passavam fome e comiam o que calhava. O meu Tio César que era o mais velho, ofereceu-se como voluntário para a tropa, com a idade mínima, para garantir três refeições por dia. O meu Avô, que se tinha reformado pouco antes do início da guerra, teve de voltar a trabalhar; nas obras, apenas a troco de alimentação, que ele, na maioria das vezes, guardava para levar para casa. Minha Mãe contava que o viu muitas vezes de lágrimas nos olhos. Os objectos de valor, serviços de louça e copos, faqueiros de prata, a pouco e pouco foram para o prestamista, até sobrar o famoso piano de cauda, que por ser muito grande ninguém quis.
Por outro lado, nunca Macau foi tão animada. As pessoas pareciam que queriam viver cada dia freneticamente, como se o dia seguinte não existisse. Todos os dias havia eventos, festas, bailes, formavam-se orquestras e tunas, organizavam-se espectáculos de todos os géneros.
Nessa época a Família Amarante viveu um dos períodos mais negros da sua história.
Fotos retiradas do site "Projecto Memória Macaense"

CORRECÇÕES: O meu Amigo João Botas chamou a atenção (ver comentários) para umas incorrecções existentes no texto e que passo a referir: houve uma inflação no número de habitantes durante a Guerra, com os refugiados chegou-se aos 500 mil e não como escrevi e a superfície de Macau nessa altura era de 15 quilómetros quadrados e não os 20, que aprendi na escola primária, numa altura que já tinha sido conquistado muito terreno ao mar. As minhas desculpas aos leitores e um muito obrigado ao João Botas.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago

in www.sapo.pt

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Tio Vasco, Aprendiz de Enfermeiro


Já não é a primeira vez que falo aqui deste Tio que, salvo erro, é o terceiro na ordem de filiação dos meus Avós (tiveram oito filhos…).
Homem dos sete ofícios, antes de sair de vez de Macau, tentou a Enfermagem. Não sei como isso funcionava, só que, contou-me ele, faziam muito trabalho prático, a par do teórico. Penso que já disse que era uma pessoa muito sensível, inteligente e com uma grande capacidade de adaptação.
A parte teórica não era problema, a prática também não, até porque tinha muito jeito para o trabalho manual: limpar, lavar, fazer curativos e pensos tudo era feito com a maior das perfeições.
Só que, há sempre um “que”… Certo dia, estando no bloco operatório com um grupo de colegas a assistir a uma intervenção de rotina, logo que o bisturi abriu o paciente, deu-lhe um “vaip” e “pimba” cai redondamente no chão. Foi um escândalo dos diabos. Mas como ele até era bom no que fazia, lá continuou a sua formação.
O pior foi num dia, em que depois de dar banho a um doente, trabalho feito com todo o cuidado e segundo as normas, quando o dito já estava todo arranjado e pronto a ser tapado na cama, deu-lhe uma volta ao estômago e lá vai de vomitar… para cima do meu Tio. Este, por sua vez, não aguentou a descarga, vomitou para cima do paciente.
E por aí ficou a experiência hospitalar do meu Tio Vasco como Aprendiz de Enfermeiro.

domingo, 13 de junho de 2010

O "Milagre" de Santo António

Vivendo os meus Avós na Rua Francisco Xavier Pereira, pertenciam à Paróquia de Santo António, cuja Igreja, uma das três mais antigas de Macau, era a frequentada por todos os elementos da nossa Família, mesmo vivendo noutra paróquia. Todos foram lá baptizados, tiveram catequese e fizeram a 1ª comunhão e foram crismados. Todos, menos eu, que por razões nunca esclarecidas, fui baptizado na Sé Catedral… Curiosamente, Santo António tinha um posto militar: era capitão, com direito a soldo, que lhe era entregue anualmente em cerimónia de grande pompa e circunstância pelo Presidente do Leal Senado e revertia para o pão dos pobres da Igreja.
Hoje trago uma história que a minha Mãe me contou. Teria ela uns cinco anos e viviam perto do quartel dos Bombeiros, onde Avô-Pá trabalhava. Em frente do quartel funcionava o consultório de um oftalmologista.
A minha Mãe via os doentes saírem do consultório com um algodão nos olhos, que deitavam fora à saída.
Para os imitar o que havia de se lembrar? Apanhou dois algodões do chão e colocou nos olhos para fingir que estava doente também. A “brincadeira” valeu-lhe uma gravíssima infecção, ficando cega dos dois olhos.
Decorria o ano de 1931 e celebravam-se os setecentos anos da morte de Santo António. Entre as festividades houve uma grande procissão em que Avó-Má, devota do Santo, participou, levando a minha Mãe pela mão. Esta, com os olhos enfaixados, não via nada, mas lembrava-se de ouvir os foguetes ("panchões") e a música das bandas que tocavam na procissão. Não sabemos se houve alguma promessa, mas o Taumaturgo deve ter atendido as preces de Avó-Má, porque a minha Mãe recuperou totalmente a vista esquerda e parcialmente a direita, ficando com uma cicatriz branca junto da pupila.
Como nisto de santos, nada melhor do que estar de bem com todos, uma vez que o Santo Casamenteiro atendeu uma prece sobre a vista, o meu Tio César chamou à sua filha mais velha Luzia, nome da Santa Protectora da vista e da visão…
Fotos: da Net

sábado, 12 de junho de 2010

Dona Sogra


Fez ontem 21 anos que partiu. Não vou recordar as circunstâncias que antecederam esse facto.
Temos tantas recordações, gratas, que serão essas que procurarei transmitir às nossas filhas, a Diana que ainda a conheceu e a Ana que já não chegou a conhecer.
Sabe, D. Sogra, que tanto a Fatinha como eu nunca tratamos os respectivos sogros por Pai e Mãe; cada um resolveu o problema à sua maneira, eu, a chamar-vos por D. Sogra e Senhor Sogro e a Fatinha a não chamar por coisa alguma, o que era bem mais difícil e complicado…
Da Senhora recebi sempre um tratamento de Filho que nunca esquecerei, embora só uma vez me tenha chamado por tal. É algo que ficará só entre nós.
Poderia dizer que foi uma lutadora, toda a vida trabalhou e muito.
Quero recordá-la pela grande vontade de aprender, de conhecer e experimentar coisas novas (lembra-se daquela mistela que envolvia beringelas que ninguém gostou? Dah…).
Lembro-me de quando vestiu um fato de banho pela primeira vez, a nossa Diana já era nascida e passávamos férias em Lagos. Lembro-me da sua satisfação a banhar-se naquele lago dentro da gruta, com a luz do sol a entrar por cima, na praia do Pinhão. Lembro-me da alegria com que veio do espectáculo de Fernando Pereira, que foi ver com o Senhor Sogro.
As nossas férias na Gaspalha, onde me ensinou tantas coisas sobre a vida do campo. Onde aprendi a “hogar” os feijões e que os rochedos afinal eram “conhos”… Recordo com alguma ternura o seu medo por nós irmos nadar na albufeira do Cabril, como o desconforto de dormir com uma osga no tecto, quando afinal até estava lá a livrar-nos das melgas e mosquitos.
Lembro-me do orgulho com que nos apresentou aos seus colegas da Rua da Prata, já éramos licenciados, ao “senhor engenheiro…” (cujo nome vou omitir).
Sei que teve um grande desgosto pela Fatinha ter casado  com um vestido cor de champanhe (“amarelo”, como disseram as más-línguas lá da rua), mas há-de concordar que nunca viu noiva mais linda. E repare que este ano, em Agosto faremos 31 anos de casados e temos intenções, se Deus quiser, de continuar mais outros tantos.
Era escusado eu dizer, mas a Diana já tem a sua vida própria, professora como os Pais e a Ana a caminho de ser Farmacêutica.
Quanto à Fatinha, quando ela usou o anel do seu Curso pela primeira vez, fui eu que o coloquei no dedo, fiz questão de dizer que era “Pela nossa Mãe”.
Talvez houvesse muitas coisas mais que pudéssemos ter dito entre nós, mas procurei respeitá-la sempre, como a Mãe da minha Mulher, como respeitaria a minha própria Mãe, mesmo quando lhe chamei “Minha Sogra Sombra Negra”, mas isso ficará para outra altura, porque merece um post só por si. Já sei que deve estar a rir-se, mas descanse que contarei essa história.
Beijinhos.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

A senhora, os brincos e o ladrão


Esta, foi-me contada pela minha Mãe.
Durante a 2ª Guerra Mundial, os meus avós, como viviam com muita dificuldade, tiveram de alugar um quarto da casa onde viviam, para ajudar a magra reforma do meu Avô.
As inquilinas eram duas chinesas refugiadas, mãe e filha, que, pelos vistos, tinham algumas posses. Eram pessoas simpáticas e dadas, pelo que, rapidamente passaram a conviver com os habitantes da casa.
Certo dia, precisando de ir às compras, perguntaram à minha Mãe se queria ir com elas, o que aconteceu.
A senhora mais velha usava uns brincos de ouro com uns pingentes de diamante, que nunca tirava. Chegadas à rua da Felicidade, começaram a procurar o que queriam. Havia muito movimento. A senhora tinha a filha de um lado e a minha Mãe do outro. As três iam de braço dado. De repente, a minha Mãe sentiu um empurrão forte que a obrigou a largar a senhora. Um indivíduo, tinha arrancado o brinco da orelha da senhora, rasgando-lhe o lóbulo. Com um sangue frio notável, a senhora, muito rápida, tirou o outro brinco, atirou-o na direcção do ladrão ao mesmo tempo que lhe gritava: “Estúpido!”. Este, apercebeu-se do gesto e do grito e pensando que os brincos eram falsos, parou e atirou, por sua vez, o brinco que tinha para junto do que estava no chão.
A senhora recuperou os brincos, coseu a orelha, mas nunca mais usou brincos enquanto lá viveram.
Foto: Rua da Felicidade nos anos da Guerra

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Três gerações de Badminton


Os desportos de raquete, mais propriamente o ping-pong, sempre tiveram grande difusão na China. A minha Mãe, Tios e Tias eram exímios na modalidade. Na casa dos meus Avós usavam a mesa de jantar, com uma rede improvisada ao meio. Eram torneios intermináveis, animadíssimos, sempre com uma fila de espera. Muitos deles eram participantes assíduos das muitas prova que se realizavam.
A partir dos anos 50, começaram a surgir em Macau kits de Badminton que tiveram logo adesão imediata. Começando como brinquedo, muito depressa alcançou o estatuto de desporto competitivo, rivalizando com o ping-pong em popularidade.
O meu Tio Hugo não teve dificuldade de fazer o “transfert” para a nova actividade, de tal forma que começou a competir e a ganhar torneios (ver recorte).
Quando viemos para Portugal em 1958, trouxemos o primeiro par de raquetes de Badminton que tivemos conhecimento no Entroncamento. Foram utilizadas até os volantes se estragarem todos e deixarem de servir, porque não tínhamos como substitui-los. Não havia à venda no Entroncamento e Lisboa ficava muito longe…
A minha filha mais velha Diana Amarante, seguindo os exemplos da Família, praticou Natação. Fisicamente era naturalmente dotada para a modalidade. Tecnicamente era boa. Tinha todas as condições para singrar, só que, não gostava de competição e por aí ficou.
Inscreveu-se mais tarde no Clube de Badminton do Entroncamento. Entusiasmou-se com os treinos e dedicou-se de tal maneira que chegou a participar em alguns torneios do Desporto Escolar a nível interno, com bons resultados.
Entre Tio Hugo e Diana Amarante três gerações de praticantes de Badminton.


domingo, 6 de junho de 2010

"Sarangong" (papagaios de papel em Patuá Macaense)


Quando chegava o Verão, o céu de Macau coloria-se com centenas senão milhares de papagaios de papel. Numa época em que não existia a prisão da televisão, nem dos PC e nets, nem dos segas e quejandos, o papagaio de papel era a forma de divertimento mais popular e barata. Para miúdos e graúdos.
Havia-os à venda, mas os craques tinham gosto em construir o “seu papagaio”. Alguns conseguiam imprimir uma forma e uma cor que quando eram lançados, os seus construtores eram imediatamente reconhecidos. Os meus Pais eram grandes “craques” nesta actividade.
Tudo começava com a escolha do papel de seda e da cana da índia que iria servir de estrutura. Depois, era o rolo de linha de uma determinada espessura e bastante comprida.
Com o papagaio construído, normalmente tinha a forma de losango, seguia-se o tratamento da linha. Esta tinha de ser toda passada por uma massa feita de cola e vidro em pó (que se obtinha esmagando garrafas velhas, com um martelo ou de outra forma). O fio, depois de seco, ficava cortante como faca. Finalmente, era só atravessar um pau no meio do rolo e estava-se pronto para o combate aéreo.
Pois era disso que se tratava. Aliás, havia uma espécie de código de honra que se respeitava. Os papagaios com rabo não eram atacados. Normalmente, eram de miúdos pequenos que se divertiam lançando apenas o papagaio, que com o rabo eram mais estáveis mas lentos nas manobras e voavam mais baixo.
Os “Combatentes”, apareciam sem rabo, normalmente eram mais pequenos e muito velozes nas manobras. Desafiavam-se entre si e davam origem a verdadeiros bailados aéreos. Aqui entrava o tal fio impregnado de pó de vidro. A táctica era simples: cada um tentava cruzar o seu fio com o do adversário, ficando por cima. Nessa altura largava linha a toda a velocidade na intenção de cortar o fio do que ficava por baixo. Caso conseguisse, havia um papagaio a esvoaçar sem controle, à mercê de quem o apanhasse.
Mas as coisas nem sempre eram assim tão simples. Se o opositor fosse bom, em dois tempos saía debaixo e passava para cima e tudo recomeçava. Outras vezes, ao largar a linha esta acabava e era a vez do de baixo largar linha e cortar o fio do que estava em cima. Eram autênticos desafios aéreos, de ataca e foge, de corta-corta, que só por si já eram um espectáculo, com papagaios em voo picado e outros em "loopings" defensivos.
Avô-Pá também largava papagaios. Mas construía-os como se faziam em Portugal: grande, com forma hexagonal e um longo rabo cheio de laços coloridos. Quando aparecia a “Estrela”, nome por que era conhecido, todos já sabiam que era do Chefe Amarante. Ninguém se metia com ele, por que sabiam que a “Estrela” não tinha capacidade de manobra, nem estava lá para desafiar ninguém. Eu ainda vi uma vez a “Estrela” impávida e serena com o rabo a dar a dar e à volta era uma guerra que lembrava os combates aéreos dos filmes da 2ª Guerra.
Contava a minha Mãe, que uma vez, houve um chico-esperto que cruzou o fio com o da “Estrela” e cortou-o, caindo no pátio dos Bombeiros. Avô-Pá, desceu do terraço, identificou o “herói”, agarrou no rolo deste partiu-o ao meio e cortou-lhe a linha. E depois disse-lhe que para a próxima era na cabeça dele…
Remédio santo: nunca mais ninguém se atreveu a meter-se com a “Estrela”.
Foto: Meu Pai, na última comissão que fez em Macau, num intervalo de uma cerimónia oficial, a manobrar um papagaio.

sábado, 5 de junho de 2010

Uma Família de atletas


A área desportiva onde a minha Mãe mais se evidenciou foi, sem dúvida, o Atletismo, mais propriamente, as corridas de velocidade.
Teve um treinador de nome Adé, que desde a sua adolescência a orientou. Nunca conseguiu ir muito longe porque atingiu o seu máximo em plena 2ª Guerra Mundial quando tudo faltava. Não consegui muitas evidências das suas prestações, para além do que me transmitiu oralmente, algumas fotografias e de alguns troféus (medalhas e taças) que conquistou. Um testemunho oral, do meu Tio Vasco, para mim, fiável, confirmou que teria feito tempos que lhe permitiriam participar nas Olimpíadas, se tivessem sido organizadas e tivesse tido oportunidade.
De qualquer modo, tenho três recortes de jornal de 1950, quando já teria 23 anos, era mãe e deixado o Atletismo há muito, foi convidada para participar numa prova de 60 metros, organizada pelo Sporting Club de Macau, prova que ganhou facilmente com 8,8 segundos. Um dos recortes dizia que “… Henriqueta Amarante mostrou que pouco perdera das invulgares faculdades que fizeram dela há meia dúzia de anos a mais extraordinária atleta que pisou as pistas macaenses
Nota: O recorte foi truncado nos resultados dos outros atletas, para não se tornar muito comprido.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Feliz Aniversário Pai!

Se estivesse vivo, faria hoje 85 anos. Nasceu na Figueira da Foz, embora a sua família fosse originária do Porto.
O seu pai, André da Silva, era tenente-músico e maestro. Era também compositor, com obras musicais registadas na Sociedade Portuguesa de Autores. Até há uns bons anos atrás, uma tia materna do meu Pai recebia anualmente uma pequena quantia (quase irrisória) de direitos de autor. Conservamos em nosso poder uma batuta oferecida por um grupo de admiradores.
A mãe, chamava-se Marieta Garcia em solteira, era doméstica e tinha uma irmã mais nova. Meu Pai tinha ainda dois irmãos, o mais velho, de nome Mário Garcia da Silva, militar de carreira onde atingiu o posto de coronel, o irmão do meio, Jaime Garcia da Silva, que morreu relativamente jovem e nunca conheci.
O meu Pai recebeu o nome do seu pai, André. Em pequeno era conhecido por “Tété”…
Meu Pai lembrava-se pouco dos Pais que morreram muito cedo, um a seguir ao outro, teria ele entre 4 e 5 anos. Foi criado pela tia materna, a Tia Albertina.
Esta, dizia que tinha ascendência espanhola e algures na árvore genealógica havia um tio-avô que era visconde, embora tivessem vivido sempre de uma forma humilde, já que a Tia Albertina trabalhava numa “tinturaria”, o equivalente às actuais lavandarias, onde lavava, tirava nódoas e “brunia” (passar a ferro) a roupa. Foi uma segunda mãe para o meu Pai, até porque nunca casou, resultado de um amor, cuja história era muito semelhante à de Avó-Má. O indivíduo por quem se apaixonou, pelos vistos foi um gabiru de primeira apanha; enquanto lhe arrastava a asa engravidou outra, e segundo parece, mais dotada financeiramente, e, costume da época, lá foi obrigado a casar. Só que a Tia Albertina nunca mais quis saber de amores, seguindo a sua vida solteira.
Aos 10 anos ingressou no Colégio Militar com o Nº.148 e ganhou a alcunha de “Rato”, que já pertencera ao seu irmão mais velho e chegara a ser Comandante do Batalhão Escolar, posto que meu Pai nunca alcançou, com grande desgosto do irmão.
No Colégio Militar criou muitos amigos, entre os quais, o actor Artur Semedo. Teve um percurso escolar sem grandes sobressaltos, mas com muitas histórias para contar (algumas terei oportunidade de debitar na altura oportuna), com mais cabulice que dedicação ao estudo.
Terminado o Colégio Militar, não querendo seguir a vida das armas, regressou ao Porto, onde se matriculou na Faculdade de Ciências. A vida de boémia estudantil não permitiu que singrasse nos estudos universitários, pelo que foi chamado para as fileiras do serviço militar obrigatório. Foi mobilizado para Macau, onde conheceu a minha Mãe.
O Colégio Militar deu-lhe regras, que a vida militar afinou. Era uma pessoa de uma cultura superior. Dominava o Inglês, fruto de milhares de livros que leu ao longo da vida.
A certa altura, já como tenente do Quadro Permanente, foi chamado a frequentar um curso sobre material de guerra nos Estados Unidos da América. Entre 32 oficiais não americanos de diversos países ficou em 1º lugar recebendo o título de “Honor Student”, facto que mereceu do seu Comandante um louvor e, posteriormente, a medalha de mérito militar.
Foi sempre muito exigente comigo (muito mais do que com os meus irmãos…); era o mais velho, tinha de dar o exemplo e ao respeito. Uma nota de curiosidade: ainda agora, o meu irmão me trata por Mano e a minha irmã, por Maninho.
Tínhamos longas conversas sobre os mais diversos assuntos, sessões de boas-maneiras em todas as ocasiões, etiqueta à mesa, como receber, como vestir, como falar. Influenciou-nos no gosto musical, permitindo-nos ser capazes de apreciar os diversos estilos de música sem constrangimentos. Criou-nos o gosto pela leitura.
Apesar da vida militar e das consequentes mobilizações para as ex-colónias, nunca deixou de ser um pai presente. Não tínhamos telefone (muito menos telemóveis…), mas havia aerogramas, os “bate-estradas” na gíria militar.
Apesar da vida nem sempre ter sido fácil para ele, e para nós por tabela (foi capitão um ror de anos sem ser promovido), com um pré vergonhoso, vivendo aquilo que ele denominava uma “miséria dourada”, nunca nos faltou o básico; não tínhamos carro, nem conta no banco, nem casa própria; não íamos à praia no Verão mas acampávamos na Cardiga, onde todos aprendemos a nadar no Tejo. Frigorífico, esquentador e televisão só muito mais tarde. Quando quis ter uma viola, dei explicações de Matemática e paguei-a a prestações. Autorizou-me a fumar à sua frente, tinha eu dezoito anos, desde que eu pagasse o meu próprio tabaco. O primeiro gira-discos surgiu em casa, já eu andava no 6º ano do liceu (actual 10º ano).
Era mais tradicionalista que conservador, apesar de ter sido educado no antigo regime. Foi saneado a seguir ao 25 de Abril. Foi um período difícil, de revolta e de injustiça. Nunca chegou a saber de que o acusaram. Mais tarde foi readmitido com tudo o que tinha direito. Quando se reformou já tinha feito as pazes com o sistema e embora não fosse da Esquerda, quando lhe comuniquei que pretendia integrar as listas da CDU como independente, em apoio de um colega de nome Henrique Leal para as autárquicas, não me levantou entraves, pelo contrário, incentivou-me a levar a intenção à frente. Sempre respeitou as minhas opções políticas. Não falávamos muito disso, mas não era assunto tabu em casa.
Quando faleceu aos 64 anos, senti, como nunca, a dor da perda, mas entre nós nada ficou por dizer, nada ficou por resolver, já que entre ambos fomos sempre sinceros e francos.
Sinto a tristeza de já não o ter entre nós, mas ao mesmo tempo, sinto a felicidade imensa e o privilégio de o ter tido como Pai.