Este Blog não adere ao Novo Acordo Ortográfico

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domingo, 28 de fevereiro de 2010

A Esther Williams Macaense

A nossa Família foi sempre muito dada ao Desporto. A minha tia Branca, a mais velha, e por isso era chamada por mim como “Tia Tai Ku Néon”, era exímia na Natação e participava, com algum êxito, em provas de velocidade.
Naquele tempo, em Macau não havia praia (suponho que continua a não haver). Na ilha de Coloane, que não estava ainda ligada à Península, existia a Praia de Hac-Sá, que significa areia preta, pouco frequentada, pela sua água, frequentemente barrenta.
A alternativa à Piscina eram as barracas de banho, umas construções palafitas à beir-mar que permitiam algum divertimento aquático, como nadar em zona vedada e andar de barco a remos.
Embora a água nem sempre fosse muito limpa e não houvesse pé, a nossa Família era frequentadora assídua do local, onde todos aprenderam a nadar, que nisto o meu Avô não perdoava. Oito filhos, oitos nadadores.
Certo dia, a Tia Branca e Avó-Má alugaram um barco a remos e afastaram-se um pouco das barracas. A minha Tia estava grávida, com uma barriga já proeminente, razão pela qual não queria entrar na água e estava a remar.
Entretanto o mar começou a picar e quando deram por ela, a água entrava no barco. Para agravar a situação, uma onda mais forte levou um dos remos. Perante os gritos da assistência, minha Tia não teve outro remédio senão mergulhar para ir recuperar o remo perdido. Conseguiu e com ajuda de Avó-Má subiu novamente ao barco e regressaram às barracas pelos seus próprios meios. Uma salva de palmas assinalou o feito. Entretanto chegava a Polícia Marítima com um barco a motor para o salvamento…
No dia seguinte, qual não foi o espanto da Família, quando os jornais de Macau e de Hong Kong noticiavam o episódio, comparando a minha Tia a Esther Williams, a famosa actriz/nadadora, uma sereia que, apesar de grávida, não hesitou em mergulhar no mar bravo para recuperar um remo e assim salvar-se e à sua mãe.

Uma Receita de Sucesso

(Dedicado ao João Alfaro)
Não sendo um blog de gastronomia, não quero, no entanto, deixar de partilhar uma ou duas receitas de família, das muitas que Avó-Má transmitiu às suas filhas.
O Receituário Culinário Macaense é o que se pode designar por uma Culinária de Fusão, utilizando uma expressão actual. Sendo Macau um cadinho onde se misturam as mais variadas culturas, os nossos palatos tinham de sofrer a influência dessa mescla de sabores e aromas. Assim, na gastronomia macaense fundem-se a portuguesa, a chinesa, a malaia, a indiana, a árabe, a japonesa, a inglesa, a russa, com toda a naturalidade, a mesma que fez da Cidade de Santo Nome de Deus um oásis de Paz, quando o resto do Mundo se digladiava em mais uma Guerra Mundial.
A receita que hoje vou partilhar, é o que se chama uma Receita de Sucesso. Com ela ganhei três prémios em três concursos, em tempos diferentes: Em 1999, organizado pelo Sapo.pt, em 2007 pelo Azeite Oliveira da Serra/Chefe Vítor Sobral e em 2008 pelo Círculo de Leitores.
Avó-Má transmitiu-a a minha Mãe que a fazia divinalmente e que, por sua vez, transmitiu-a à Fatinha minha mulher. Embora já tenhamos feito algumas alterações, vamos postar a receita na sua forma original:
Bafaçã
Ingredientes:
• 1 peça de lombo de porco com osso
• 2 a 3 dentes de alho
• Açafrão das Índias
• 1 folha de louro
• Azeite
• Batatas
• Sal e pimenta
Preparação:
• Num tacho aquece-se o azeite com o alho esmagado e a folha de louro, sem deixar queimar.
• Junte a carne inteira e deixe tostar de todos os lados para selar.
• Polvilhe com açafrão ao gosto (2 a 3 colheres de chá)
• Tempere com sal e pimenta.
• Junte água suficiente e tape, baixando o lume para estufar.
• Quando a carne está quase cozida (a querer separar-se dos ossos), junte as batatas descascadas e cortadas aos quartos para cozerem no molho.
• Retire e escorra bem a carne e as batatas, deixando, se necessário, algumas para engrossar o molho esmagando-as. Se quiser um molho mais aveludado, aplique a varinha mágica.
• Num wok (ou frigideira grande) frite a peça de carne em azeite bem quente.
• Faça o mesmo às batatas.
• Separe a carne dos ossos e fatie-a.
• Sirva a carne numa travessa com as batatas à volta e o molho sobre a carne e o que sobrar numa molheira.
• Acompanhe com Arroz Branco (cozido em água, solto e sem sal).
Sugestões/Comentários:
Bafaçã (também aparece como "Bafassá") significa abafar (estufar) e assar. Na parte final da preparação, a carne e as batatas deveriam ir ao forno para tostar. Como Avó-Má não tinha forno, optou por fritar em azeite, como foi descrito.
O amarelo da carne e o branco do arroz combinam muito bem com o negro de umas azeitonas bem portuguesas servidas à parte.
Numa refeição informal, separe os ossos, que ficam sempre com muita carne ainda e sirva-os ao mesmo tempo. Vai ver que não faltam candidatos.
Para tornar este prato mais económico pode usar uma peça de pá de porco.
Na sua evolução, em vez de água optámos por vinho branco para estufar.
Como toque pessoal e segredo do “chefe”, dez minutos antes de retirar a carne e as batatas do tacho, junte um cálice de Vinho do Porto.
Bom apetite.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

A Dança do Dragão

Quando era miúdo, assisti várias vezes à Dança do Dragão. Esta, era executada tradicionalmente no Ano Novo Chinês e no Novo Ano Lunar.
As primeiras referências surgem por volta de 200 a 220 da nossa era.
Considerado um animal sagrado, a sua presença trazia sorte e felicidade.
Era executada por troupes, normalmente com elementos de escolas de artes marciais.
Quanto maior fosse o Dragão, mais sorte trazia. Os movimentos obedeciam a uma coreografia pré-determinada, que variava ao longo da prestação. À frente da cabeça do Dragão, nunca a mais de um metro de distância, seguia um elemento, normalmente o mais respeitado da escola, transportando uma bola, que supostamente era perseguida pelo Dragão, simbolizando a Sabedoria, a Vitalidade, a Riqueza, a Vida. Era este elemento que ordenava as mudanças de coreografia. Os passos e os movimentos eram marcados pela percussão de tambores. O ambiente era sempre de muita cor e movimento, já que o Dragão nunca pode ficar parado.
A Dança do Dragão era também utilizada para inaugurações (para dar sorte…). Nestas ocasiões, era costume colocar-se um envelope vermelho pendurado de um pau a uma determinada altura, com uma quantia de dinheiro que deveria ser “comido” pelo Dragão, após muitos avanços e recuos. É evidente que, quanto maior fosse a quantia oferecida, mais alto estava o envelope. Por vezes, ultrapassava o 1º ou o 2º andar. Nestas situações, os manobradores do Dragão, tinham que socorrer-se de outros colegas da escola para formarem uma pirâmide humana e por vezes subiam através de varas de bambu para alcançarem o envelope.
Quando alcançavam o objectivo eram aplaudidos com muito entusiasmo e queimados milhares de “panchões”, ficando o ar saturado de cheiro a pólvora e o chão coberto de resíduos.

Uma descompostura em Patuá

A pedido da minha filha mais nova

«Vai ná minha bolontrão
Sevandija discarado,
Eu diverá mutu reva,
Olá ung-a Nhum assim malvado!

Vôs non tem nada di bom,
Divera certo falá,
Respiate sem vergonha,
Pra vôs non quêro olá.

Tudo laia tem roindade
Est'ung-a bobo quarenta fora
Si vôs vai na minha casa,
Pinchá de jinela fora.

Non quero vae vosso casa
Tem medo de suzá pê,
Quim qurê tratá cô vôs?
Tché!... Lé cô lé, côcré.
Gente Benfeto»

Macau em 1835

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Nossa Senhora da Guia

Da casa dos meus Avós era visível a colina da Guia, encimada pelo Farol com o mesmo nome, considerado o mais antigo do Extremo-Oriente. Rodeado por uma Fortaleza, sob cuja protecção se erigiu uma capela votiva a Nossa Senhora da Guia.
Quando era miúdo, era para lá que os nossos olhares se dirigiam quando os tufões ameaçavam, já que era onde se erguia uma estrutura que içava os sinais visuais da intensidade dos mesmos.
Contava Avó-Má que durante a dominação espanhola, os Holandeses tentaram tomar a cidade de assalto. A estátua da Senhora da Guia teria saído da sua capela e, abrindo o seu manto, teria protegido a cidade das balas inimigas. Decorria o ano de 1622.
Mas a lenda ganhou mais crédito no segundo quartel de século XX. O cimo da Colina da Guia era uma zona militar, rodeada de arame farpado. Perfurada de túneis estratégicos, albergava também um paiol de munições militares. Certo dia o paiol rebentou, ameaçando a cidade à sua volta com as suas explosões. Minha Mãe já era nascida e contava que se lembrava muito bem. Pois, mais uma vez a Senhora da Guia deixou a sua capela para, com o seu manto, proteger Macau dos rebentamentos. Curiosamente, as pretensas testemunhas oculares, na maioria da população chinesa, não cristã, falavam de uma senhora com um manto azul e braços abertos.
Segundo sei, actualmente a Guia é uma das zonas turísticas mais visitadas de Macau, integrando o complexo do Património Mundial da Humanidade.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Mézinhas

É curioso como uma simples mas inoportuna constipação, com o seu séquito de sintomas (dor de cabeça, tosse, nariz entupido, olhos lacrimejantes...) podem influenciar na disposição de um mortal.
Escrever, não me apetece, trabalhar, muito menos; o que me vale é que hoje não tenho aulas.
Bem precisava de uma mézinha das que Avó-Má aplicava nestas ocasiões e era remédio santo. Mas por muito que falasse comigo, eu ainda não tinha idade para que partilhasse comigo os segredos ancestrais que guardava escritos dentro do célebre tijolinho de louça que lhe servia de almofada no Verão.
Panaceia para quase tudo era o álcool canforado que fazia em frascos enormes e distribuía pelos filhos: álcool, cânfora e alecrim em ramos, plantado e colhido por Avô-Pá no jardim fronteiro à casa. Após um tempo de maceração, estava pronto para quase tudo: dores de cabeça, de costas, pancadas, hematomas. tosse (esfregar no peito e tapar com uma toalha quente...).
Curiosamente, há já alguns anos atrás, recorri aos serviços de um "endireita" cá do burgo e ele recomendou-me "álcool canforado"...

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Lovers Forever

Dizia-me uma Colega há tempos, ao reconhecer no meu dedo o anel das Bodas de Prata (ela trazia um semelhante), que “…já somos uma raça em vias de extinção…”.

Não sei; perante tantos casos de separação precoce, 25 anos de vida em comum podem ser uma eternidade. Mas os laços que unem os que verdadeiramente se amam não se rompem de qualquer maneira. Se essa vida em comum for construída no dia a dia, olhando os dois em frente e não apenas um para o outro, como diria Saint-Éxupèry.
É por isso que hoje, Dia de S. Valentim, transformado pela comercialização no “dos Namorados”, ilustro o post com uma imagem de cavalos-marinhos. Já que o “Rei da Criação” não dá o exemplo, dão-nos os cavalos-marinhos. Apenas se acasalam um vez, vivendo o resto da vida sempre com a mesma companheira.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Kung Hei Fat Choi

À meia-noite de hoje, a China entra Ano do Tigre. É o Ano Novo Chinês. Vão ser três dias de folia.
Antigamente, durante um ano inteiro o Chinês trabalhava, sem férias. Exceptuando o Ano Novo. Os preparativos eram feitos com muita antecedência, limpava-se a casa que era decorada com as cores de vermelho e dourado (da sorte), substituía-se a mobília mais velha, até o velho “wok” da cozinha ia para o lixo, dando lugar a um novo. No altar da família, os pivetes perfumavam o ambiente, as flores eram mais lindas e as oferendas mais profusas. Compravam-se roupas novas. As refeições eram mais ricas e variadas.

As ruas enchem-se de gente que se cumprimentam com “Kung Hei Fat Choi”, o correspondente ao nosso “Feliz Ano Novo”. Era a altura em que as mulheres casadas regressavam, de visita, à casa dos pais, em sinal de manifestação que não os tinha esquecido.

Eram dadas prendas, os “Li Si”, na forma de pequenos envelopes vermelhos com letras douradas, com dinheiro, normalmente moedas. Os mais pobres, simbolicamente, davam os envelopes vazios.
Quando era pequeno, era uma ocasião em que visitava a família toda e as pessoas amigas. Num ano de sorte, enchia os bolsos de “Li Si”. Era mais divertido do que o Natal.

Como normalmente se celebrava também o Novo Ano Lunar e a Festa da Primavera, as casas e as ruas, à noite, enchiam-se de lanternas de papel. Antigamente eram feitas de bambu, forradas com papel de seda. Mais tarde surgiu o papel celofane e depois, o plástico. Pouco dado a doces, os Chineses consomem os chamados “Bolos da Lua”.

As crianças transportavam as lanternas penduradas na ponta de uma cana. Tinham as mais diversas formas: frutas, animais, flores… Também podiam ser puxadas, neste caso tinham 4 rodas. As lanternas mais sofisticadas chegavam a ter a criança dentro, como num carro de bebés, só que empurradas pelos pais…

Por todo o lado o barulho e o cheiro a pólvora dos “panchões” (equivalente aos nossos foguetes) misturavam-se com o som dos tambores das danças do Dragão e dos Leões.

Kung Hei Fat Choi! Kung Hei Fat Choi!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Fiquei mesmo sensibilizado!...

PÓ DE OSTRAS
Ao Reinaldo Amarante
Os rapazes velhos
guardam memórias
como quem guarda berlindes,
numa caixinha de papel
lá no fundo do armário,
lá no fundo da alma
onde os pares rodopiam
entre as colunas e o piano.

Os rapazes velhos
deslizam num soalho prateado
nos braços da infância.

Publicada por Ivone Costa em Terça-feira, Fevereiro 02, 2010 em "Ponteiros Parados"

Já há muito que devia ter colocado aqui o poema, que já agradeci sensibilizado,à autora. Vontade não faltou, o tempo é que já é escasso.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

"Não há outra mais leal"

Como todos os Macaenses do meu tempo, falamos de meados do século passado, sofremos a influência das várias culturas que fizeram de Macau a sua confluência e a tornaram numa Babel dos Tempos Modernos, catalizada pelos inúmeros refugiados que nele encontraram alguma paz nos conturbados tempos da Segunda Guerra Mundial.

Normalmente todos os Macaenses têm uma costela portuguesa, na maioria das vezes, do lado paterno. A primeira língua que aprendiam verbalmente, era o Cantonense. Paralelamente, lá iam tagarelando o Português, “Macaquês”, como o meu Pai gostava de dizer. Mas era mais um cocktail de Cantonense/Português, feito mais para comunicar com os Portugueses genuínos que de outra forma ficavam com os “olhos em bico” para serem entendidos. A juntar a isto, dada a proximidade de Hong Kong, o Macaense, muito cedo aprende a falar o Inglês que aprofundará quando entrar para a escola. O Patuá, que já referi noutras ocasiões, era o dialecto dos mais idosos, uma espécie de curiosidade em vias de extinção.

O Português, como língua, oficialmente começa na Escola Infantil. Mas era muito complicado. Só me lembro que não percebia o que a Professora (Educadora) dizia, apesar dela exprimir-se em Português e Cantonense.

Era suposto que a criança, ao chegar à Escola Primária já dominar o Português. Na realidade, nós falávamos (mal) com os Professores em Português na sala de aula, mas nos recreios, entre nós, era o Cantonense.

Por outro lado, os manuais que utilizávamos eram os mesmos da Metrópole (Portugal). Assim, aprendíamos, sem nunca termos visto, o que era um “cântaro”, uma “bilha”, um “moinho, um moleiro e um burro”, sabíamos que a Serra da Estrela era a mais alta de Portugal e no Inverno tinha neve, que nunca tínhamos visto, como as linhas ferroviárias todas, sem nunca termos visto um comboio e os rios e afluentes, onde nasciam e desaguavam, quando o único rio que conhecíamos era o mar chamado Rio das Pérolas…

Os mais afortunados passavam férias no Japão ou na Tailândia, outros, tinham a suprema felicidade de visitar Portugal numas “férias graciosas”, de quatro em quatro anos, se o Pai fosse funcionário público… Os restantes, contentavam-se com uma saltada a Hong Kong ou ficavam confinados aos então vinte quilómetros quadrados do território da Cidade do Santo Nome de Deus de Macau “Não há outra mais leal”, lema atribuído pelo facto de, até à sua restituição à China, a Bandeira Portuguesa nunca ter sido arreada.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Corno de Veado

Nestes tempos de pandemia que afinal não se sabe se são ou não, recordo um episódio de saúde pessoal.

Teria talvez uns sete ou oito anos, adoeci, já não me lembro muito bem dos sintomas.

Quis o acaso, que morássemos num primeiro andar, cujo rés-do-chão era ocupado por uma farmácia chinesa.

Era um local muito intrigante para nós, crianças. Frascos e frasquinhos, boiões e caixas de todos os tipos, produtos à mostra, outros fechados a sete chaves, mas acima de tudo um cheiro diferente que até nem era desagradável, mas que nada tinha a ver com as farmácias ocidentais.

Não sei de quem partiu a ideia. Consultado que foi o farmacêutico chinês, o “Mestre China”, um respeitável senhor de meia-idade, o diagnóstico foi: papeira.

O passo seguinte, foi o tratamento. Entre uma panóplia de chás, xaropes, pós, óleos, pomadas e outros produtos esquisitos aos olhares dos não iniciados, saiu do fundo de uma gaveta, bem acondicionada, uma ponta de corno de veado. Não me perguntem se era do pai do Bambi, nem a brincar. Tinha visto há pouco tempo o filme e só a sua lembrança me fazia chorar… Sei que o pedaço de ornamento animal foi previamente pesado com todo o cuidado e entregue à minha Mãe com a recomendação expressa de o esfregar vagarosamente, muito poucochinho, com umas gotas de água, no fundo de um prato áspero de modo a formar uma espécie de pasta, com a qual devia aplicar nos lados do meu pescoço, duas vezes por dia.

Do cheiro não me lembro, mas a sensação era fresca e agradável. Uns dias em casa e muita canjinha de galinha e outros miminhos fizeram o resto.

Quando fiquei fino, a sobra do corno lá voltou à farmácia, pesada de novo, paga a diferença de peso (segundo a minha mãe, até nem foi barato…) e acondicionada para outro paciente.

Diz a minha filha mais nova, estudante de Ciências Farmacêuticas, que a papeira mal curada pode provocar esterilidade nos rapazes. Por acaso sabia, mas o facto de já termos descendência vem provar que a terapêutica resultou.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Meu Irmão

Esta é de um passado mais recente.

Meu irmão Mário foi sempre considerado o bom malandro da família. Enquanto a mim tudo era esperado e exigido, como o mais velho, ele teve sempre as atenuantes necessárias. Era porque, quando estava ainda na barriga da nossa Mãe tiveram um acidente de rickshaw e podia ter ficado afectado… era porque teve meningite em criança (a nossa querida Mãe dizia pomposamente “princípio de meningite”...), o facto de ser muito atreito a tosses durante o Inverno e muito mauzinho a comer, deram-lhe um estatuto que não era usual num filho do meio. E como o meu Irmão, cujo coração é grande até não poder mais, podia ser tudo o que dissessem, mas parvo é que não era, protagonizava cenas macacas ao abrigo desse estatuto pseudo-especial.

No então Externato Mouzinho de Albuquerque, era cábula até mais não, o inverso da minha fama de ajuizado. Por ser o mais velho e ter a confiança ilimitada dos nossos Pais, quando o Director queria alguma coisa de nós, era a mim que se dirigia.

Um belo dia, fui chamado ao Gabinete do Senhor Director (facto que já não me deixava muito tranquilo…); mostrou-me um teste escrito de Matemática do meu Irmão, onde, a vermelho, sobressaía um “Medíocre”, com todas as letras. O problema não era esse. As relações do meu Irmão com essa disciplina nunca foram muito boas, pelo que não estava admirado. O Director tinha dúvidas era na assinatura do nosso Pai. De facto tinha razões para isso. O nosso Pai, para os testes escritos utilizava a sua “assinatura”, com o nome completo. Para documentos de menor importância, utilizava uma “rubrica” muito simplificada que era a chapada no teste.

Perguntou-me se eu reconhecia a rubrica. Eu estava hesitante, mas depois, lembrei-me que o nosso Pai estava doente, de gripe ou algo parecido, e de cama. Pensei cá para mim, como assinou deitado e com pouca paciência para mais uma nega, rubricou e por aí ficou, sendo que a letra um pouco tremida derivava do facto de ter sido feito na cama… Foi o que expliquei com toda a minha convicção ao Director. E fui na Paz do Senhor.

Certo dia, já nem me lembrava do episódio, ao arrumar um livro que o meu Irmão tinha deixado fora de sítio, um pequeno pedaço de papel vegetal caiu lá de dentro. Apanhei-o, olhei e fez-se luz na minha cabeça. À minha frente, a rubrica do meu Pai, copiada sabe Deus de onde e depois decalcada no tal teste que eu afiançara ao Director ter sido rubricada pelo nosso Pai.

A narrativa fica aberta. Usai da imaginação para um final coerente.