Este Blog não adere ao Novo Acordo Ortográfico

------------------------------------------------------------------

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Os meus Avós Maternos II


O meu Avô era um Português originário de Vila Nova de Gaia, lá das bandas de Baião. Filho de pai incógnito, dizia-se que a sua mãe engravidara do filho dos donos da casa senhorial ou quinta onde trabalhava como empregada doméstica. Frequentou pouco a escola. Meu Avô falava pouco desse tempo. Dizia que para ir à escola tinha de andar a pé muitos quilómetros, pelo que desistiu de estudar muito cedo e até casar era praticamente analfabeto. Dizia que, para ganhar algum dinheiro, vendia jornais, o Século. Era ateu convicto. Da Igreja contava que dava ao fole no órgão durante as missas e que quando se cansava e adormecia, o padre organista dava-lhe pontapés debaixo do órgão para o acordar. Para compor o ramalhete era Republicano dos quatro costados. Nunca aprendeu Chinês (Cantonense) apesar de ter vivido quase toda a vida em Macau, salvo umas quantas palavras desgarradas (mormente piropos às jovens chinezinhas...) que usava amiúde.
Como muitos portugueses de então, foi para Macau na tropa, e finda a comissão de serviço, resolveu ficar por lá.
Quando se casou, era um homem alto, bem parecido, espadaúdo, e ostentava um bigode impressionante.
A certa altura da sua vida, ingressou na carreira de bombeiro municipal, onde singrou a pulso até ao posto de Chefe. Entretanto, aprendera a ler (apenas letra de imprensa, o que lhe permitia ler jornais) e assinar o seu nome, ensinado pela minha Avó. O casamento dera frutos. Quatro rapazes e quatro raparigas foram baptizadas pela ordem de nascimento: Branca, César, Vasco, Henriqueta, Tito (falecido ainda jovem, não cheguei a conhecê-lo), Gisela, Hugo e Nídia.
Como Bombeiro destacara-se na sua função, tendo sido várias vezes condecorado e louvado. A vida da Família corria dentro da normalidade, com algum desafogo que permitia ter um cozinheiro e duas empregadas domésticas.
Reformou-se ainda relativamente novo, após ter cumprido o seu tempo de trabalho. Quando se preparava para gozar de um tempo de merecido descanso, rebentou a Segunda Guerra Mundial. A vida muda. As dificuldades surgem. Tudo o que tinham em casa começa a desaparecer. As baixelas de loiça, os faqueiros de prata, prendas de casamento, rapidamente escorreram para um qualquer prestamista, a troco de alguns patacos. A mansão onde habitavam teve, a certa altura, de receber hóspedes para ajudar a reforçar o orçamento familiar. Meu Avô teve de voltar a trabalhar, como trabalhador braçal, a troco de comida. Mesmo assim, a minha Mãe falava muito da fome e das dificuldades que passaram nesse período.
Do que me lembro dele, Avô-pá era um Avô à moda antiga. Ar severo exteriormente, muito cioso da sua escrivaninha e do seu cadeirão de descanso tecido em verga, que um dos filhos tinha sempre o cuidado de substituir quando se estragava. A sua grande alegria era nas festas ver-se rodeado dos filhos, genros, noras e netos (e eram muitos...). Era o exemplo do Português do antigamente que desenraizado, mantém, mesmo assim, os mesmos costumes, as mesmas lembranças. Nunca mais voltou a Portugal. De dois em dois anos tinha possibilidade de visitar o País de origem, mas com tantos filhos pequenos, não era viável e depois, já era tarde.
Gabava-se de nunca ter tomado banho com água quente, a não ser quando nasceu e uma vez, quando foi hospitalizado... De Verão era de chuveiro, no Inverno era da água do poço que carregava do quintal até ao primeiro andar...
Na parte da frente da casa tinha um jardim que tratava com desvelo. Além de uma nespereira (a única que estávamos autorizados a subir...), tinha cameleiras, damas da noite, cravos brancos, madressilvas e... alecrim, com que a Avó-má fazia garrafas de álcool canforado que distribuía pelos filhos, mezinha para quase tudo.
Dos lados e traseiras, era o pomar com capoeiras e coelheiras ao fundo, se é que se podia chamar assim, já que o solo, irregular e pedregoso, fora quase todo conquistado à custa dos braços do meu Avô e produzia muito pouco.
Plantara umas goiabeiras e umas caramboleiras que forneciam as mais doces carambolas que me lembro de alguma vez ter comido, e uma árvore de São José (?), cujas folhas eram muito apreciadas pelos coelhos e de cuja seiva fazíamos uma espécie de cola para apanhar libelinhas e uns quantos pés de videira que nunca deram nada de jeito, mas juntamente com uma figueira um tanto raquítica, ajudavam a matar as saudades da terra natal,
No dia 5 de Outubro de cada ano, era vê-lo içar com todo o orgulho a Bandeira Nacional, como republicano convicto que se considerava. Aliás, havia um quid pro quo na casa dos meus Avós que nunca vi resolvido: a minha Avó, religiosa que era, tinha um quadro representativo da Última Ceia na sala de jantar, virada para o qual rezava sempre antes e após as refeições. O meu Avô, para não ficar atrás, colocou por baixo uma moldura com uma gravura muito popular na época, que mostrava os heróis do 5 de Outubro de 1910 rodeando uma figura feminina, com um seio nu, a conduzir uma turba revolucionária... Quando estava para aí virado, era ouvir o meu Avô a "picar" a minha Avó: "Olhem para ela, a rezar à República!". Invariavelmente a resposta era sempre a mesma: "Que sacrilégio João! Quando morreres vais para o inferno!" (o meu Avô chamava-se Simão, mas a minha Avó não gostava e até ao fim das suas vidas chamou-lhe sempre João...). Mas apesar destas picardias, era o que se podia chamar um casal unido, com mais ou menos facadinhas do meu avô, à boa maneira portuguesa antiga.

Sem comentários:

Enviar um comentário