Uma figura que ocupa um lugar inquestionável nas minhas lembranças é a minha avó materna, a Avó-Má (esta designação Má nada tem de pejorativo, era o diminutivo da "mamã" ocidental que nós, os netos, pronunciávamos à chinesa, de forma aberta "mamá"; da mesma forma, o nosso avô materno era chamado por "Avô-Pá"). Na minha infância, até me separar dela quando saí de Macau, foi aquela Avó que todos temos ou gostaríamos de ter e imaginamos: bondosa, um pouco forte, de cabelos grisalhos, boa contadora de histórias, compreensiva e sempre surpreendente. Era muito religiosa, tinha um oratório à moda antiga no seu quarto, diante do qual rezava muitas vezes. Aliás, rezava antes e depois das refeições, ao deitar e ao acordar... No Verão, dormia com a cabeça apoiada num tijolinho oco de porcelana à boa maneira oriental, tijolinho esse que era uma autêntica caixinha de surpresas: de dentro tanto podia sair um terço como receitas de mezinhas misturadas com pagelas de santinhos, madeixas de cabelos dos filhos quando pequenos ou recibos de casas de penhores...
Muito do que sei sobre Macau foi-me contado por ela. Dizia-me que a sua família era originária das Filipinas. Se bem me lembro, tinha duas irmãs: Maria e Carina. Como se chamava Henriqueta, a minha Mãe apanhou com os nomes das três manas, daí ter-se chamado Henriqueta Maria Carina. Os Pais dela (o pai era guarda-livros e a mãe era doméstica) separam-se quando ela era muito nova. Da separação ela ficou com o pai e as irmãs com a mãe. Estas últimas foram para as Filipinas e ela e o pai vieram para Macau. Como o pai era abastado, ela foi internada num colégio de freiras onde recebeu uma educação esmerada até o dia em que o pai morreu. De interna pagante passou a "tolerada"; continuou no colégio, mas passou a trabalhar na cozinha para pagar a sua educação e aí ficou até ir para um hospital aprender enfermagem. Tinha um tutor, salvo erro, um militar (capitão?).
A minha Mãe contou-me que a minha avó, nesse período, era muito bonita, e apesar de órfã e com poucos ou nenhuns rendimentos, tinha muitos pretendentes. Teve, a certa altura, uma paixão por um indivíduo, que se veio a revelar pouco digno dela. Enquanto lhe arrastava a asa engravidou outra rapariga e segundo os costumes em uso, foi obrigado a casar com ela.
A minha Avó teve um grande desgosto, deixou de sair; as suas colegas da enfermagem diziam que ela iria ficar solteirona, que mais ninguém iria querer casar com ela. Minha Avó respondeu que não, que continuava a receber pedidos de casamento e para lhes mostrar que era verdade, aceitaria o primeiro pedido que recebesse. Esse primeiro pedido foi de um indivíduo de nome Simão Amarante, português e tinha como profissão bombeiro. Como não sabia escrever, a carta tinha sido escrita por um amigo.
O facto é que começaram a namorar à moda da época, com dias e horas marcados e sempre na presença da inevitável "chaperon", pau-de-cabeleira em bom Português... Contava a minha Mãe que era uma velha senhora (enfermeira) que ficava sentada a fazer tricot, na mesma sala onde a minha Avó recebia o seu pretendente. Namoravam sentados, lado a lado, virados na mesma direcção, em cadeiras separadas e afastados um do outro, pelo que não havia hipóteses de contacto. Se a conversa avançava para um campo mais pessoal, a dita Senhora tinha um acesso de tosse, apesar de aparentar não prestar atenção à conversa...
Desta situação resultou algo caricato. Só na noite de núpcias a minha Avó olhou, pela primeira vez, o meu Avô de frente e viu que tinha marcas de bexigas na cara.
Foi um casamento com alguma pompa e circunstância, apesar de tudo; o tutor tinha gerido bem a herança deixada pelo meu bisavô. Fez-se uma grande festa, receberam muitas prendas, algumas muito valiosas. Ouvi falar em baixelas luxuosas e faqueiros de prata. Ainda me lembro de um piano de cauda que já ninguém tocava, mas sobreviveu à 2ª Guerra Mundial que tanto haveria de abalar a Família. (continua)
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